Andando na escuridão
fevereiro 16, 2019Foto: arquivo pessoal |
Não me esquivo diante de temas pesados. Pelo contrário, gosto de falar sobre eles e mesmo que isso me torne um pouco mórbido, enfatizo no discurso diário exatamente o contrário. O que é a vida senão uma série entrelaçada de momentos bons e ruins? Por algum motivo, e que bom que não há respostas, a cada pessoa cabe viver bem a intensidade de sua vida. Dou graças a Deus pela oportunidade de enfrentar desafios, limitações e tristezas desde cedo. Não que eu tenha afeição pelo sofrimento, não é isso. Entretanto, mesmo quando devia me preocupar com os prazeres adolescentes, compreendi que as dores e a tristeza têm lá o seu valor.
Aos 16 anos de idade passei por uma cirurgia que me deu
potência de agir. Até então, era um menino deslocado, tímido e sofredor de
preconceitos pelo fato de ser um pouco “diferente” dos demais meninos da
cidade. É curioso olhar para trás e visualizar esse menino franzino que mantinha
um tom de voz inalterável. De fato, não é fácil ser um menino gay numa cidade
do interior. Nesse feudo, não há contestações e sim, a reprodução de uma falsa
ideia de viver. Na cozinha, numa das inúmeras conversas com minha já falecida
avó materna, ela me confessou que não sabia o que era o amor e que no fundo,
não sabia dizer ao certo porque se casou com o meu avô. Na geração da minha mãe
também não foi muito diferente. Após sofrer episódios machistas dentro da sua
união, tomou as rédeas de sua vida com todas as possibilidades criativas, mas
também com os riscos da decisão. Solteira e com dois filhos, foi viver a vida
do seu jeito e enfrentou o que tinha que enfrentar: o trabalho, a cobrança da
família, a pobreza, a doença, a solidão e a depressão. De fato, não é fácil ser
uma mulher solteira numa cidade do interior.
Após a cirurgia que retirou parte importante do meu
intestino, a minha experiência com a vida começou a tomar uma forma diferente.
Agora, mais vibrante e com sede de viver, detinha uma nova chance para
enfrentar meus medos e limitações. Passar pelo vale tenebroso da morte foi
interessante, mas doloroso. Lembro com perfeição do exato momento em que minha
mãe foi se despedir de mim antes de me levarem para a mesa cirúrgica. Foi a
sensação mais estranha que já tive. Enquanto ela dizia que tudo ia ficar bem,
via seus olhos conectados aos meus com um brilho inicial de manjedoura. Após o
beijo e o sinal da cruz, desci as rampas da Santa Casa de Misericórdia ouvindo
gemidos, choros e gritos. As simpáticas enfermeiras teimavam em conversar
comigo para disfarçar o incômodo trajeto, mas não tinha escapatória. Era noite
de carnaval e o hospital estava cheio de pessoas ensanguentadas, queimadas e
com fraturas expostas. No meio de tanto desastre, uma cena me marcou: um homem ferido
sem boa parte do crânio achava graça de sua situação. Sua forma tagarela incomodava
os pacientes mais azedos. Num certo dia de grande otimismo, os outros pacientes
pediram para retirá-lo do quarto coletivo. Ah, o quarto. Noites frias e
solitárias. As poucas horas de visita a que eu tinha direito me faziam pensar
muito sobre a vida. Acostumado a ver o mundo, vivia num quarto com adultos
mutilados. Me recordo com certa melancolia, mas não tristeza. Depois dessa
experiência me tornei um rapaz mais forte para encarar os capítulos da vida que
viriam em seguida. Já dentro da sala de cirurgia, portas fechadas, luz forte no
rosto e muitos procedimentos até a agulha entrar pela minha veia levando o
remédio que me faria dormir por quatro horas. Apesar de não ser uma pessoa que
sonhe muito ou tenha pesadelos, já tive memórias turbulentas em relação ao que
vivi durante a cirurgia. Ao acordar da anestesia, foi como se recebesse um tipo
de energia instantânea. Quis levantar da cama, pois sentia muita dor. Era tanta
dor que pedia à enfermeira que me desse mais remédio para dormir. Enquanto eu
suava, ela dizia que não podia inserir mais remédio. Aos poucos ia me
acostumando com tudo e seguia conversando com ela. De vez em quando, quando
sofro de enxaqueca ou sinusite reflito: será que foi por conta dessa
experiência que me tornei mais resistente às dores? De volta à mesa de cirurgia.
Muito simpática e atenta, eu e a enfermeira nos tornamos amigos por poucas
horas. Em certo momento, talvez por efeito dos remédios, acreditei que éramos
cúmplices. Acho que revelei a ela alguns pequenos e singelos segredos de
adolescente. Depois que voltei ao quarto, nunca mais a vi. Encontrar minha mãe foi uma grande alegria e alívio. Depois
de tantas horas foi extremamente reconfortante perceber que tudo estava indo
bem até ali. As instruções médicas eram grandes: nada de esforço, dieta
regrada, comidas líquidas e a evacuação das fezes deveria ser a mais natural
possível. Até aquele momento a única informação que tinha é que uma pequena
parte do meu intestino foi retirada e por isso, precisava de cuidados
especiais. Fiquei poucos dias no hospital depois da cirurgia. Era a hora de
voltar para casa. Agradeci ao máximo todos que podia. Saí dali com certa
tristeza. Não sei explicar.
Foto: arquivo pessoal |
No carro; eu, meu pai, minha mãe e uma motorista
que não lembro mais o nome. Durante a viagem de retomada, meus olhos buscavam
os detalhes do mundo. Era o final de tarde de um dia luminoso. Na rodovia, um
detalhe: apenas uma das faixas estava em boa situação, pois era uma obra
demorada. Estávamos na pista asfaltada quando numa curva, quase dentro de uma
ponte, uma carreta surgia em nossa direção como um fantasma. Não me recordo em
quanto tempo essa cena durou, mas me recordo do silêncio dentro do carro. Era
como se tudo flutuasse em câmera lenta. Dizem que quando se está à beira da
morte, um tipo de filme passa pela frente do sujeito. No meu caso, seria um
reencontro, um flashback? A carreta estava na contra mão e seguiu para o outro lado da
estrada. Nosso silêncio durou alguns metros até ser quebrado pela minha risada.
Estava no banco de carona e vi a traseira da carreta quase encostar-se ao vidro
do carro. Na pior da hipótese, todos morreriam naquele acidente depois de uma
cirurgia que salvou a minha vida! Percebi que tinha que tomar as rédeas do
clima, pois todos ali estavam mais nervosos do que eu. Talvez um dia, faça um
filma desse fato. De qualquer modo, esse quase acidente também compreendido
pela minha mãe como um livramento de Nossa Senhora, foi uma das grandes
experiências da minha existência. Depois disso, não me recordo do dia que tive
o medo real, o que paralisa para concretizar sonhos. Estaria eu blefando com a
morte? Sem dúvida, a vida sempre me pareceu muito intensa.
"Se eu fechar os olhos agora", posso me recordar da infância em
Jacarepaguá, bairro do Rio de Janeiro. À margem de uma rodovia e abaixo de uma
floresta tropical, os homens da família construíam uma casa, a que seria na
minha imaginação por muitos anos a casa de férias. Enquanto a casa era
construída, vivíamos num barraco improvisado com madeiras roxas. Aliás, durante
muito tempo essa era a minha cor preferida. Tanto a ponto de pintar tudo de
roxo, de me vestir nos tons e chupar apenas picolé de uva. Loucura. De volta à
floresta, chorava desesperadamente. Todos da família não conseguiam entender
tamanha aflição. Até que, agarrado ao colo da minha mãe, apontei para os sinais
luminosos que surgiam de repente na escuridão. Sábia, minha mãe me apresentou
para os bichinhos. Após esse contato generoso, dormi bem e no outro dia, o
convívio já era mais divertido no breu. Já por volta dos dez anos de idade, a
aflição era outra. Antes de dormir, recitava todos os nomes dos santos
existentes no universo. Isso nunca foi algo de que pudesse me orgulhar. Era
sofrível para uma criança ficar tantas horas acordado de madrugada. O melhor de
tudo é que não de recordo de como isso passou. Introspectivo e atento à
natureza, tudo era interessante. Escrevia palavras no ar, desenhava bem mais do
que hoje, falava sozinho por quase todo o dia e criava muitas histórias. O
mundo paralelo era mais interessante, pois nunca me senti pertencente à
realidade. Um dia, para evitar o medo de escuro, fiquei preso no quarto com as
luzes apagadas. Era o sinal de que era preciso crescer. E rápido. Essa talvez tenha
sido a pior decisão. Pela pressa de viver, podei o que hoje busco para
ressignificar o sentido da vida. Adélia Prado, a minha preferida, certa vez
escreveu: “Meu Deus, me cura de ser grande. Me dá cinco anos”. Hoje, compreendendo
a trajetória, me esforço para reencontrar esse menino para que ele ocupe o meu
lugar.
Notas:
1 - O insight para escrever esse texto veio após a leitura do livro "Um crime da solidão" de Andrew Solomon. Recomendo muito.
2 - "Se eu fechar os olhos agora" é um livro excepcional do querido Edney Silvestre.
3 - Se possível, após a leitura do texto ouça a música ""Dancing In The Dark" de Bruce Springsteen. Vídeo abaixo:
1 - O insight para escrever esse texto veio após a leitura do livro "Um crime da solidão" de Andrew Solomon. Recomendo muito.
2 - "Se eu fechar os olhos agora" é um livro excepcional do querido Edney Silvestre.
3 - Se possível, após a leitura do texto ouça a música ""Dancing In The Dark" de Bruce Springsteen. Vídeo abaixo:
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