No ano de 1971 o cantor canadense
Robert Charlebois lançou uma mas mĂşsicas mais populares do Canadá: “Un gars ben ordinaire”. Quarenta e
cinco anos depois, a tambĂ©m canadense CĂ©line Dion regravou a mĂşsica com pequenas alterações, autorizadas pelo amigo conterrâneo. A obra integra o premiado álbum “Encore Un Soir”, Ăşnico em lĂngua
francesa a figurar na lista dos mais vendidos da Bilboard em 2016. Retirando o
fato de Dion ser uma cantora global, o álbum Ă© aclamado pela crĂtica por um desafio árduo: refletir de forma sutil sobre as perdas. Em uma semana,
CĂ©line sofreu com a morte do marido e irmĂŁo, vĂtimas de câncer. Em “Ordinaire”, a cantora expurga a alma ao
reafirmar quem é: apenas uma cantora popular. Sem grandes extravagâncias no
mercado da música, Céline assume sua vocação. Com uma produção
impecável, o álbum Ă© considerado um dos projetos mais genuĂnos da artista.
“É quando
canto que me sinto melhor”
CĂ©line Dion
Assim também acontece com os
escritores. Em seu livro, “OfĂcio de Escrever”, Frei Betto afirma
que não seria feliz se não escrevesse. De fato, não há como ser pleno realizando um trabalho que não corresponde
aos desejos profundos da alma. Entretanto, muitos são os percalços para se
chegar a essa afirmativa. O mundo e suas complexidades minimizam a importância
do talento inicial, a arte em estado de experiência. Quantos pais cortam a criatividade dos seus filhos logo nos primeiros passos da vida? A imaturidade espiritual inverte os valores e enfraquece o hábito da leitura, do aprendizado e do respeito aos sinais que a vida dá. A criatividade se comunica por meio dos signos. Uns
chamam de feeling, insight, DejĂ vu ou Deus. Seja qual for o nome, o que se
sabe Ă© que essa realidade existe. Portanto, a espiritualidade Ă© o reconhecimento de que
existe algo maior que o homem. Esta capacidade de reflexão é uma das ferramentas que dá estrutura para a
construção de uma segurança interior capaz de arar o fértil terreno da produção
de conteúdo. Ter clareza do que se é e do que se deseja alcançar é o primeiro
passo para o desenvolvimento de uma atitude promissora no trabalho da escrita.
Cada um possui, ou deveria possuir, o seu processo. Muitos gurus, professores
de roteiro e livros de autoajuda apontam caminhos e constroem fĂłrmulas de
sucesso. A cada um cabe reconhecer o que
é útil pra si, mas todo roteirista deve utilizar bem as ferramentas cinematográficas.
Cursos, professores, palestras, diálogos, resenhas, músicas, textos, pessoas
desconhecidas, posts de Facebook e frases do “Pensador” sĂŁo elementos que vĂŁo compor a assinatura do trabalho de qualquer um. O mais importante Ă© reconhecer
que a obra Ă© maior que o autor e que quando a sensibilidade aflora, trata-se,
na verdade, de um trunfo na construção de grandes histórias.
"Eu escrevo como se fosse salvar a
vida de alguém. Provavelmente a minha própria vida." Clarice Lispector
É preciso seguir os mestres. O grande roteirista Luiz Carlos Maciel, falecido em 2017, deixou extensa obra a todos os que se
propõem a seguir o mesmo caminho. Em seu livro “O Poder do ClĂmax”, Maciel reconhece o
autoconhecimento como peça chave na construção de roteiros com densidade cinematográfica.
Seja fazendo yoga, ouvindo Céline Dion ou rezando o terço da Misericórdia, não
importa, todo processo criativo deve levar o roteirista ao estágio do silêncio
mental. É nessa hora que a boa história fala por si só. Todos possuem histórias
e projetos para a TV, cinema ou para oferecer Ă Netflix, mas poucos sĂŁo os que
constroem histĂłrias genuĂnas. Ao que parece há uma vibração no mercado
audiovisual de que todos podem ser roteirista. De fato, isso Ă© possĂvel desde
que haja empenho e dedicação para cumprir bem essa missão. Numa obra
audiovisual, como tarefa de muitas mĂŁos, existe uma compreensĂŁo comum que se chama
escrita visual. É o resultado da criação das experiĂŞncias construĂdas pelo
diretor, roteirista e produtor. Filmes e sĂ©ries que impressionam, repercutem e exploram outras dimensões ou camadas sĂŁo, na maioria, construĂdos sob uma intensa atividade de estudo e trabalho para que todos os
signos e elementos façam sentido, empurrem visualmente a história pra frente É preciso tocar no sentimento das
pessoas. É quando a obra está sob a égide da experiência criativa. É quando se ouve a mensagem de
Deus-Universo. NĂŁo se trata simplesmente escrever histĂłrias tristes ou alegres.
Trata-se de uma pulsante atividade emocional dada pelo suor de um trabalho puramente
racional. Por isso, o respeito pelo processo. “Moonlight”, “Get Out”, “Big
Little Lies” e o recente e delicioso “Call me by your name” cumprem muito bem
esse desafio.
"Escrever
é deixar uma marca. É impor ao papel em branco um sinal permanente, é capturar
um instante em forma de palavra."
Margaret
Atwood
A citação de Margaret é um
incentivo à sofisticação, ou seja; o cuidado com o trabalho. Esse requinte
visual está presente no filme “Me chame pelo seu nome”, lançado no dia 18 de
janeiro no Brasil. Todos os que amam audiovisual
precisam ir ao cinema e prestigiar o belo trabalho de equipe presente na obra. É
impressionante perceber como os elementos cinematográficos conduzem os olhos do
público. Percebe-se que o roteiro está numa dimensão muito parecida com a
experiência de uma pintura exposta num quadro. A direção é impecável e toda
cena possui um elemento de comunicação muito forte. Absolutamente tudo que está
inserido ali faz sentido. O roteiro caminha num movimento crescente e constrĂłi muito bem
a relação entre os personagens, inclusive os estágios de um relacionamento. É como
se o público entrasse num carro em movimento. Obviamente que existe uma sedução
própria: a Itália! Tudo é lindo, simples, requintado e propõe uma experiência única:
viver a vida. A fotografia é calculada, mas coloca o espectador numa posição de
liberdade quase impressionante. Tudo construĂdo. Plano sob plano. Quando os personagens estĂŁo juntos: foco no
diálogo. Quando estão separados: planos abertos. A narrativa evoca a trilha. O
som, nesse filme, é um dos personagens e dá tom às reflexões. A sexualidade ali, não parece ser o foco,
pois o que se apresenta de verdade é a humanidade de cada um. Há algo maior que
acena na complexidade da história. A direção é muito inteligente, pois dá
pistas desde o inĂcio. É como se as cuecas, as frases Ă beira da piscina, a
fruta e a fome fossem metáforas para apresentar o que viria a seguir: o amor.
Em nenhum momento no filme os mistérios são ditos. Não há explicação. Tudo está condicionado à s
imagens. Quando Jennifer Van Sijll, Margaret Mehring e Luiz Carlos Maciel
refletem sobre o processo criativo do roteiro estĂŁo apontando para essa
construção minuciosa. Tudo Ă© construĂdo com mistĂ©rio como se abas fossem se abrindo e trazendo
mais problemáticas à história. De fato, algo viria no futuro. A conversa entre
pai e filho no sofá é arrebatadora. Há um silêncio na perfeição daquela vida.
Há um tempo de respiro, uma aceitação, uma questão muito maior sobre o que dois
homens fazem quando se beijam. Existe uma frase potente no filme que precisa
ser colocada aqui: "NĂŁo mate a alegria que um dia vocĂŞ
sentiu". É
importante perceber a grandeza da obra. A tĂ©cnica de J.J Abrams, conhecida como “The mystery box”, ensina que no processo
de construção de um roteiro é como se o roteirista desmontasse uma caixa e
quando a resolução já estivesse concluĂda, nĂŁo restaria alternativa senĂŁo a sua
reconstrução. A função da caixa é guardar mistérios assim como o roteiro, que
numa escrita cinemática Ă© desmontado para a chegada do clĂmax. Entretanto, ao
alcançar a resolução, para cumprir a sua funcionalidade precisa, voltar a
guardar mistérios.
"Existem três regras para escrever ficção. Infelizmente ninguém sabe quais são elas."
W. Somerset Maugham
“Me chame pelo seu nome” Ă© um
filme global e muito bem articulado. Seus produtores, entre eles o brasileiro
Rodrigo Teixeira, foram muito felizes na construção dessas mensagens. Todas as
crĂticas ao filme sĂŁo de muito bom gosto e acenam para o que já foi dito
anteriormente: trata-se de uma obra plena, arquitetada e com grandes
possibilidades de ser classificada como o filme da vida de muitos. É uma grande aula de narrativa cinematográfica. Não se pode negar que há também um ótimo desenho de produção, de como fazer filmes de qualidade, com proposta visual e impacto de negócio. Que ninguém se prenda às amarras
do mercado. É fundamental investir no autoconhecimento para construir uma obra
genuĂna. Cuidar do processo criativo no desenvolvimento do roteiro deve ser a maior preocupação de qualquer roteirista ou produtor antes do desejo de vender ingresso. É preciso deixar que a obra fale por si. Apenas dessa forma Ă© que os resultados virĂŁo. E eles chegam.
Ao que parece, assim como praticado por Céline Dion, ouvir a voz do coração ainda é o maior dos conselhos.
No vĂdeo abaixo, CĂ©line conta sobre carreira, relação com o trabalho e como foi difĂcil começar.
PS: Escrevi o texto no domingo, apĂłs assistir ao filme, mas nĂŁo consegui publicá-lo no mesmo dia. Algo me pediu para esperar. Havia algo que precisava ser dito. SaĂ da sala com a sensação de que o filme poderia ser indicado ao Oscar. Hoje, 23 de janeiro, “Me chame pelo seu nome” Ă© indicado a quatro Oscars – Melhor Filme, Melhor Ator (TimothĂ©e Chalamet), Melhor Roteiro Adaptado e Melhor Canção Original (Mistery Of Love).
Ao que parece, assim como praticado por Céline Dion, ouvir a voz do coração ainda é o maior dos conselhos.
No vĂdeo abaixo, CĂ©line conta sobre carreira, relação com o trabalho e como foi difĂcil começar.