Roteiro e a complexidade da construção narrativa
janeiro 07, 2018Foto: João Augusto |
No dia do leitor, muitos já devem ter lido pelo mundo do entretenimento que “em roteiro, nada é por acaso” ou que “não existe cena gratuita”. De fato, trata-se de um princípio básico da linguagem cinematográfica: contar histórias de forma visual. Por isso, tudo o que aparece precisa ter um valor único além de um conceito unificador.
“ A
gente não gostava de explicar as imagens porque explicar afasta as falas da
imaginação”.
Manoel
de Barros
Quando Jennifer Van Sijll
afirma em sua obra “Narrativa Cinematográfica” que muitos roteiristas não
utilizam as ferramentas cinematográficas, na verdade, ela acena para uma
orientação: aprofundem os roteiros.
“Avança
para águas mais profundas, e lançai vossas redes para a pesca”
Evangelho
de Lucas 5,1-11
Jennifer aponta para um
conceito muito usado na contemporaneidade: a complexidade. E aí faz-se
necessário trazer a reflexão de um pensador muito relevante na Sociologia. Niklas
Luhmann aprofunda o debate ao introduzir a figura do observador e eleva a
complexidade como a unidade de uma multiplicidade. Eis o gancho! Maturama e
Varela, biólogos e teóricos chilenos criadores do livro “A árvore do
conhecimento”, afirmam entre outras coisas que a complexidade é uma riqueza
natural. Daí vem a necessidade de criação de histórias mais dinâmicas,
entremeadas, articuladas e conexas. Mesmo que aparentemente não faça sentido
algum para o fã, o roteirista sabe que lá na frente a elipse virá. Luhmann trata ainda do limite de conexões de
relações, do fator tempo, da autorreferência das operações e da representação
da complexidade na forma de sentido. São conceitos sociológicos capazes de
transformar o nível de qualquer projeto. Vale a pena debruçar-se sobre as teorias
autopoiéticas e miméticas. É bem divertido.
“Apesar
de tudo o que aconteceu com as cidades em sua história, não importa quão
drasticamente se tenham alterado sua estrutura espacial, seu aspecto e seu
estilo de vida com os passar dos anos ou séculos, uma característica permaneceu
constante: as cidades são espaços em que estranhos ficam e se movimentam em
estreita proximidade uns dos outros”.
Zygmunt
Bauman.
Um minuto de silêncio em
homenagem à Bauman. O pai de Black Mirror. É fascinante ver, literalmente ver,
todos os links e as abordagens teóricas numa série da Netflix. O criador Charlie
Brooker é um homem experiente, satírico, pessimista e que imprime lindamente
sua análise de mundo. Qualquer sujeito se vê questionando os fatos diante de um
episódio. Black Mirror é uma experiência psicanalítica no streaming. Há quem
goste de desvendar mistérios, há quem goste de perpetuá-los e há quem goste de
brincar com eles.
“Quem
não se viu centenas de vezes, a cometer ações vis ou estúpidas, pela única
razão de que sabia que não devia cometê-las? Acaso não sentimos uma inclinação
constante, mesmo quando estamos no melhor do nosso juízo, para violar aquilo
que é lei, simplesmente porque a compreendemos com tal?”
Edgar
Allan Poe
Como se vê, a transdiciplinaridade
é apenas uma palavra bonita pra tal “Bagagem” que Adélia Prado tanto fala ou
pra “visão de mundo” que a mãe de qualquer um também diz quando o filho não
estuda. “O mundo vai te cobrar lá na frente”, ela avisa. De fato, ele cobra. Há quem saia na frente e puxe o gatilho. A
blogueira Natália Marcos escreve periodicamente para o El País e fez uma bela
análise da série e das mensagens universais de cada episódio. O conceito unificador está lá. No Twitter e em
muitos posts nas redes sociais, os espectadores desejavam mais adrenalina, mais
impacto e mais plot twist. É interessante perceber como as mensagens subliminares ainda soam como obstáculo. Será que é preciso explicar tudo? Para alguns, sim. A última temporada trouxe aspectos mais densos da existência humana e
fatores menos eventuais. Aliás, não se apegar a eventos é uma lição valiosíssima. No Brasil, certo diretor estreante lançou seu
filme político com uma ambição genuína e legítima. Ao invés de aprofundar a
tensão pela captura da figura, optou por uma cena longa e com perseguição
policial. Considerou relevante inserir
metáforas com ratos e outras explicações políticas. O filme deu um pouco mais
de um milhão de espectadores, mas com um valor de produção exorbitante e que no
final de tudo, “não fecha as contas”. Escolhas
equivocadas, falta de direção ou desconhecimento das ferramentas
cinematográficas? Regra clássica: se alguém sai da sala de cinema considerando apenas
o figurino ou a qualidade da fotografia, na verdade trata-se de um grave sinal:
a falta de história com valor cinematográfico.
“Film
form is how the screenwriter’s ideas are realized on film. It’s how things look
and sound, but is not confused whit the technicalities os film production. Film
production is the process of executing
the choices os film form that the screenwriter has written into the screenplay.
I define filmic as any device – visual and aural – that utilizes the
potencialities basic and unique to the motion Picture art form. These devices
are multiple and varied. They’re what I call filmic elements”.
Margaret
Mehring
Graças à complexidade humana é
possível construir roteiros tão densos e cheios de múltiplos sentidos, capazes
de fisgar a atenção de fãs e espectadores cada vez mais exigentes. É relevante refletir, em roteiro,
principalmente sobre a quebra de paradigmas, do que simboliza e do que repercute
como verdade. “Moonlight” é um belo exemplo do bom uso dessas ferramentas. “The Sinner” também é estonteante. “Big
Little Lies” idem. É sempre bom ressaltar que roteiro é carpintaria e,
portanto, arte pura. É a dominação da emoção pela técnica. E sim, é complexo. E tal como relacionamento, qual
a graça se não for?
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