Roteiro e o valor do sofrimento
dezembro 31, 2017Obra de Elisa Castro exposta em 2016 no Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica |
O sofrimento é um dos combustíveis dos poetas. Claramente existem outros, mas este talvez seja o principal por conta de uma ferramenta muito valiosa: a expiação. Escrever não deve ser um ato sofrível, mas o seu processo é um convite capaz de levar o escritor para um espaço de transformação. Para muitos, escrever dói. É compreensível. Mas aqui, o que se pretende afirmar é que a expiação na escrita deve revelar o confronto dos sentimentos. A dor, a tristeza e a depressão são úteis, não como uma tarefa sadomasoquista, mas para a construção de uma densidade dramática, colaborando na qualidade da escrita do autor/roteirista. Quando Toquinho e Vinícius em “Como dizia o poeta” lançaram um “ai” nas estrofes, ressaltaram o valor do sofrimento que transforma, vivifica e ilumina. Se na escrita é preciso ter maturidade, na sequência dos ingredientes está o sofrimento como um bom fermento de massa sovada na mão.
“Meu
amigo, vamos sofrer,
vamos
beber, vamos ler jornal,
vamos
dizer que a vida é ruim,
meu
amigo, vamos sofrer”.
Carlos
Drummond de Andrade
Sim, uma massa pode ser sovada
por máquinas. Margaret Mehring, cineasta, renomada professora universitária e
criadora do USC Filmic Writing Program, cumpriu muito bem sua missão nesse
mundo ao criar um dos livros mais respeitados no audiovisual: “The Screenplay”.
Na obra, ela descreve algo que deveria estar tatuado no braço de cada
roteirista do mundo:
“Filmic writin, by my definition, is
a process”.
Margaret
Mehring
Essa afirmação acena, como a
estrela de Belém, para uma atividade luminosa que transformará o roteiro numa escrita
visual e com valor cinematográfico. Abrasileirando
a expressão, é possível afirmar que roteiro é artesanato. Deve ser feito à mão,
com o carinho e a exigência de atenção que o sofrimento exige. O uso irresponsável
das novas tecnologias está maltratando o processo criativo dos produtores de
conteúdo. São tantos aplicativos, sites,
blogs e técnicas que o respeito aos insights está praticamente em segundo
plano. Não é porque existe receita que o bolo não pode ter outro sabor ou
forma. Pelo contrário, o uso das ferramentas ajuda a elevar o nível da
sofisticação. O perigo está quando a preguiça
se instala e o roteirista abandona o seu modus
operandi em prol das fórmulas. O bom
roteirista deve entregar um conteúdo clínico, atento e preciso. Só é pragmático
quem sabe o valor das emoções. É por isso que as grandes séries e filmes
repercutem: por entrarem no coração da audiência. A máquina pode até tentar,
mas o sabor do bolo de fubá da avó é muito mais complexo que o passo a passo da
receita.
“De
vez em quando, Deus me tira a poesia. Olho pedra e vejo pedra mesmo”.
Adélia
Prado
Um dos efeitos colaterais da
revolução tecnológica é a difusão de informações rasas. Todos possuem
informações. Aliás, informação é o que não falta. O plot twist deste imbróglio é a curadoria. Sai na frente quem potencializa
o olhar genuíno sobre as realidades, as concentra sob um recorte e reflete. O
desafio está em acreditar em Deus e na mágica do circo, mesmo sabendo que o coelho
sempre esteve dentro da cartola. Escrever, desenhar, pintar, cantar e fazer
filmes é acreditar no que está por detrás das coisas. É estruturar o subtexto alinhavado,
como diz Allan Poe. É preparar o caminho para a mensagem maior, como bem diz
São João Batista. Importante trazer essa passagem:
João
1, 26
“João
respondeu-lhes, dizendo: “Eu batizo com água; mas, no meio de vós, já está quem
vós não conheceis. Ele é aquele que vem depois de mim, cujas correias das
sandálias não sou digno de desamarrar”.
O roteirista é como o profeta,
que prepara o caminho para a chegada da mensagem maior. E mesmo o bom seguidor
não está isento das grandes provas. João pregava no deserto, apontava os erros
do mundo e teve a cabeça cortada. Nos tempos atuais, o deserto se povoou de
pessoas que mal se conhecem e que provavelmente, apesar de dizerem que gostam
muito um dos outros, dificilmente trocarão textos ou terão tempo para discutir
um artigo.
“Eis o mistério da fé”
Para escrever bem um roteiro é
preciso refletir sobre a realidade e, inclusive, sobre o que é o real. Se as
mídias priorizam a imbecilidade, se a depressão se tornou um fenômeno social,
se a robótica substituirá o trabalho humano, se a o amor não é praticado, se o
vício em vídeo game é uma doença mental, se o silêncio no filme precisa ser
explicado, se a vigilância é uma necessidade e se o diálogo se esgotou, qual o caminho?
É
mistério mesmo. Ao que parece, só resta
acreditar nos sonhos e praticar as experiências espirituais da criação. LucFerry, pensador francês, diz que a fé laica, ou seja; a fé no outro, poderá
ser, se praticada, uma boa alternativa para a serenidade. Pra ele, felicidade
não existe.
“Deixe que os mortos enterrem os
mortos”
Na sociedade do medo, surge um caminho:
viver a experiência genuína da vida. É
com todos os percalços do dia a dia, das misérias e dos prodígios, das
opressões dos conceitos e da liberdade que se desconhece, dos ombros resvalados
na pia da cozinha, dos ciúmes e das eternas juras de amor, das crises e das
bonanças, da ideia genial e da procrastinação do trabalho que a beleza do
mistério se encontra. É com grandes traumas e divinas libertações que a vida se
faz. É por isso que o poeta escreve. Não
há vida sem conflito e é essa a benção do roteirista.
Ladainha
Na
tentação da carne, pedi a Deus que me livrasse da tristeza. "Quero ser
alegre, Senhor! Quero sair por aí cantando glórias." A lágrima à beira de
desaguar secou ao ouvir a voz do Mestre: "Sossega, menino! És poeta! Acaso
não sabeis?".
Jussan
Silva e Silva
“O
interessante da vida é a tarefa da vida”.
Adélia
Prado
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