Escrever é escavar a vida

dezembro 03, 2017

Foto: João Augusto
A palavra é o refúgio da salvação. Se foi por tal via que se deu o início de tudo, certamente será por ela que a glória virá. Entretanto, estaria a palavra ameaçada pela fugacidade dos novos tempos? Lavoisier, químico francês e "pai da Química Moderna" apontou para a poesia ao escrever que "na natureza, nada se cria, nada se perde, tudo se transforma". Levando em consideração tal premissa é possível refletir, por analogia, que a maneira como o ser humano se comunicará no futuro passará por intensivas transformações. Não se sabe afirmar se a Humanidade será influenciada por uma condição predominantemente imagética ou se a convergência definirá o bom acesso às informações. Porém, é preciso ter muita clareza para compreender que a razão de existir do homem está na comunicação, no contato com o outro. As formas de acesso ao conhecimento sofrerão mutações, mas até que se crie o contrário, a palavra permanecerá.

"O livro é como a colher, o martelo, a roda ou a tesoura. Uma vez inventados, não poderão ser aprimorados". 
Umberco Eco

Claramente há uma super valorização da imagem no mundo contemporâneo. Basta um passeio rápido pelas redes sociais para verificar a predominância da imagem e do vídeo. O que antes era uma sensação entre os mais jovens, alastrou-se para os pais e avós destes. Não há problema nisso, pois as novas tecnologias provocam a acessibilidade e fortalecem laços, mas há um alerta. O uso excessivo das criações tecnológicas têm provocado certo distanciamento nas relações humanas e gerado uma comunicação mais direta e fragmentada,  objetivando o imediatismo. Essa nova geração digital, exposta pela alta complexidade humana, sofre o grande risco de perder o sentido da existência. O número crescente de adolescentes e jovens em depressão só demonstra a fragilidade das experiências vividas por tais sujeitos. O que se pretende demonstrar aqui é a falta de profundidade dessa geração altamente capaz e inteligente, mas pouco sofisticada na vocação da vida. Tais jovens são treinados para o sucesso, para o empreendedorismo e para as conquistas que virão. Entretanto, falham na colaboração, na difusão do conhecimento, e no fortalecimento de relacionamentos mais conscientes.


“Sempre vejo anunciados cursos de oratória. Nunca vi anunciado curso de escutatória. Todo mundo quer aprender a falar. Ninguém quer aprender a ouvir. Pensei em oferecer um curso de escutatória. Mas acho que ninguém vai se matricular. Escutar é complicado e sutil". 
Rubens Alves 


Analisar o recorte psicológico de um país é indispensável na construção de histórias e em todo o trabalho de um escritor ou roteirista. É a atmosfera do sentimento que norteia a produção das grandes séries e filmes que viajam pelo mundo e conquistam a audiência. Escrever sob tal perspectiva é um  um ato de coragem, já que é preciso que o escritor dispa-se de si mesmo para que a mensagem transcendente escreva por si. Portanto, para escrever é preciso de "Bagagem", como ensina Adélia Prado, e de maturação, como ilumina Frei Betto. O contato com a palavra religa o homem ao seu "Gênesis" e o coloca em análise, em confronto e em discussão constante. É dessa descida ao inferno pessoal que se gerará os conflitos necessários para a produção das grandes obras.

"Meus filhos terão computadores, sim, mas antes terão livros. Sem livros, sem leituras, os nossos filhos serão incapazes de escrever, inclusive, a sua própria história". 
Bill Gates 

Escrever é apontar caminhos, fazer escolhas, casar palavras, oxigenar conceitos, criar novos mundos e transformar realidades. Pra contextualizar, gerar senso crítico e emendar corações é preciso amar e deixar a alma escrever. O poeta em si, não importa. O que vale mesmo é a sua obra. Quando o escritor impera mais que as palavras é sinal que falta-lhe a humildade em reconhecer o mistério de sua vocação. Escrever é silenciar, deixar o Sublime agir, ouvir a voz do coração, descascar laranjas, conversar com o porteiro, contemplar o céu do domingo e se espantar com a folha que cai da árvore. Escrever é não ter medo da morte, pelo contrário, é desafiá-la. É pôr-se à prova, submeter-se à bancas, acatar as críticas e fazer amigos. Escrever é crer no não dito, é beijar o proibido, afugentar os medos e aprisionar a preguiça. Escrever é plantar sementes, arar a terra e esperar a primavera chegar. Escrever é se debruçar na janela, chamar a vizinhar, coar café e queimar a língua. Escrever é chorar com o salmo, louvar à Nossa Senhora , pecar, mas pedir perdão três vezes. Escrever é revisar e dizer; - Ah, agora sim!

"As melhores coisas que você escreve vêm de um lugar que você não compreende". 
Dostoiévski 

Bridget Riley é uma pintora londrina, hoje com mais de 80 anos, que sofria no início de carreira com a falta de prestígio do seu trabalho. Riley estava passando por uma crise artística. Daí ela mergulhou na própria vida para compreender o que parecia ser óbvio. O essencial. Já que suas peças de arte não faziam o sucesso esperado, ela decidiu abandonar o que considerava primordial: as cores. A partir dessa experiência e sacrifício pessoal, começou a pintar somente em preto e branco. A partir de então, passou a receber grandes e positivas críticas, o que mais tarde gerou a criação de um novo movimento: o Art Op. Foi pela catarse, pela violência criativa e pelo abandono do eu lírico que a artista passou a figurar sob um nova consciência.  Como se vê, Bridget experimentou o milagre da beleza. Foi quando a poesia falou por si, que a artista encontrou o sentido que tanto lhe faltava. Essa é uma inspiração perfeita para todos os artistas que sofrem com as mesmas inquietações. São essas dores que levam o poeta à revelação. 






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