Amando num mundo em desordem

novembro 26, 2017

Foto: João Augusto 


Quando um homem chega ao mundo já recebe várias obrigações, mas uma impera: ser homem. Ser homem, no pior sentido da palavra, revela uma criação caduca das coisas. É essa figura mandatória e autoritária que pretende dominar o mundo e criar ferramentas de defesa contra seu maior obstáculo: o sentimento. O mundo ensinou o homem a não perceber sua alma. "Homem não chora!" é um slogan que ecoa nas maternidades do planeta. Tudo é masculino: o mundo, o judiciário e Deus. Nessa perspectiva, é difícil para muitos perceber outra ideia de ser humano sem tais parâmetros deterministas. A poucos dias, discutia-se no curso de roteiro sobre o conceito de "corpo". O que é isso? Não existe corpo masculino. A ideia de corpo é a partir da ideia gerada pelo esteriótipo da mulher como coisa. O corpo que estampa é o corpo da mulher, porque é esse o vocativo construído.  À mulher, apenas a "honrosa" vocação de ser uma peça complementar na engenhosa engrenagem que é a vida. Essa falha crucial na determinação de sentidos nas coisas naturais provocou o surgimento de sociedades altamente perigosas fincadas em extremismos. Estabeleceu-se padrões, contratos, regras e leis que, na verdade, são indizíveis frente às ideias libertárias que já circulam no submundo da existência humana. Tais aspirações utópicas levarão a Humanidade  para a tentativa primária, e fracassada, da compreensão da realidade. O ser humano luta por sentido, e já sabe que a resposta não existe. Sócrates é invicto nessa premissa. 



Diante da complexa figura criada do homem, faz-se necessário despi-lo para convidá-lo, assim como na alegoria de Platão, a enxergar que há luz além de si. A contemporaneidade é uma Era Possível, cheia de energias transformadoras capazes de iluminar mentes viciadas. As lutas ideológicas continuarão, mas já se vislumbra uma necessidade global irreversível: a construção de um novo convívio. É chegada a hora de reconstruir o homem e levá-lo a aspirar possibilidades mais criativas. Se o mundo foi criado por um homem, vê-se que  tal modelo já caminha para o fracasso. Se a experiência humana é de reconstrução, certamente já é possível prever gerações mais conscientes, colaborativas e sustentáveis, mesmo em dinâmicas de conflito. A construção de novos arranjos, mesmo envoltos de vícios do passado - empreendedorismo, economia criativa, marketing do comportamento, coworking, produção de conteúdo e outros termos considerados "novos", na verdade, são reestruturações  na linguagem promovidas pelo poder econômico para prolongar a sobrevivência do capital - já sinalizam para a formação de sociedades mais humanas. É bom lembrar que tudo começou quando a Revolução Industrial promoveu a cultura do encontro entre os agentes,  fortalecendo a produção, a indústria e o consumo. As novas tecnologias "só" fortaleceram essa dinâmica como bem nos indicou o saudoso Bauman em suas obras líquidas. O homem será convidado a amar sem casamento, a transar com quantos desejar, a não trabalhar, a não votar, a não matricular seus filhos em escolas, a ter uma fé sem Deus e de se perceber mulher. 




É um convite. Mais sensível, o novo homem terá a sua frente um mar de possibilidades, como diz a Palavra em Deuteronômio 30: "(...) ponho diante de ti a vida e a morte, a bênção e a maldição. Escolhe, pois, a vida, para que vivas com a tua posteridade". É estarrecedor perceber quanto a Humanidade falhou na defesa da vida. O diretor e roteirista Darren Aronofsky sempre teve em suas obras, uma fixação sobre a interferência do religioso nas atividades humanas, mas nada supera seu último filme. "Mother!" é uma obra corajosa, pois extrapola a linguagem cinematográfica. Para o homem sensível, a mensagem de Darren é muito clara e soa quase como um aviso: "Viu o que vocês fizeram?". Aronofsky faz um convite visual à Humanidade. Ao que parece ele não foi compreendido, tendo em vista o fracasso de bilheteria.  O óbvio às vezes é um espanto. "Apesar de tudo, Jesus dizia: “Pai, perdoa-lhes, pois não sabem o que estão fazendo!”, como consta em João 23. O desafio é imenso, pois o retrocesso político, a desigualdade social e os medos estão instalados em todas as estruturas, entretanto, os muros também estão ruindo. Alguns pensadores, denominam que tais conflitos, são na verdade, atritos entre Eras. Nos últimos anos, estudiosos estão se concentrando cada vez mais na relação entre ciência e espiritualidade. Pra quem se debruça sobre a poesia, não há muita dificuldade em entender a conexão, sem tratar, é claro, das questões religiosas. Estuda-se, na verdade, a experiência mística, que será cada vez mais individual. O convite. A Física Quântica já coloca em xeque as noções de realidade e matéria. Existe algo maior acima de tudo. 


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Nessa parte, a lâmpada do quarto queimou. Talvez seja a hora de terminar. Em "Contos de Mistério e Imaginação", Allan Poe apresenta histórias adubadas com temas bem humanos: morte, sedução, cobiça, poder, magia, medo e mistério. É sobre tal pilar que a experiência humana está fincada, e essa talvez seja a grande verdade. É diante das transformação do mundo, que o ser humano se transformará, agindo com mais compaixão, bondade e amor. O pensamento utópico ainda vigora e seus frutos são visíveis. Se pela busca da verdade o homem provocou equívocos sem medida, a reparação pela via do amor é a alternativa mais sensata para a sua sobrevivência. Em a "Revolução do Amor", Luc Ferry apresenta alternativas viáveis ao elencar elementos para a ressignificação de sentidos. Num mundo assolado em erros, só a busca por algo maior é capaz de guiar os seres humanos para uma compreensão melhor do que somos. Se só há mistério, e bendito seja Deus por isso, o que resta a cada um é amar. Eis o convite. 


"Humanidade é um sentimento de benevolência por todos os homens que somente se inflama numa alma grande e sensível. Esse nobre e sublime entusiasmo atormenta-se com os sofrimentos dos outros e a necessidade de aliviá-los; desejaria percorrer o universo para abolir a escravidão, a superstição, o vício e o mal.
Ele esconde-nos os erros de nossos semelhantes ou nos impede de senti-los. Mas nos torna severos para com os crimes: arranca das mãos do celerado a arma que seria funesta ao homem de bem. O que ele faz não é nos afastar de elos particulares, mas, ao contrário, torna-nos amigos melhores, cidadãos melhores, esposos melhores. Ele se apraz em expandir-se pela benevolência em relação aos seres que a natureza aproximou de nós. Vi essa virtude, fonte de tantas outras, em muitas cabeças e em poucos corações".  
Denis Diderot
Filósofo




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