Roteiro, Céline Dion e “Call Me By Your Name”

janeiro 21, 2018


No ano de 1971 o cantor canadense Robert Charlebois lançou uma mas músicas mais populares do Canadá: “Un gars ben ordinaire”. Quarenta e cinco anos depois, a também canadense Céline Dion regravou a música com pequenas alterações, autorizadas pelo amigo conterrâneo. A obra integra o premiado álbum “Encore Un Soir”, único em língua francesa a figurar na lista dos mais vendidos da Bilboard em 2016. Retirando o fato de Dion ser uma cantora global, o álbum é aclamado pela crítica por um desafio árduo: refletir de forma sutil sobre as perdas. Em uma semana, Céline sofreu com a morte do marido e irmão, vítimas de câncer. Em “Ordinaire”, a cantora expurga a alma ao reafirmar quem é: apenas uma cantora popular. Sem grandes extravagâncias no mercado da música, Céline assume sua vocação. Com uma produção impecável, o álbum é considerado um dos projetos mais genuínos da artista.

“É quando canto que me sinto melhor”
Céline Dion

Assim também acontece com os escritores. Em seu livro, “Ofício de Escrever”, Frei Betto afirma que não seria feliz se não escrevesse. De fato, não há como ser pleno realizando um trabalho que não corresponde aos desejos profundos da alma. Entretanto, muitos são os percalços para se chegar a essa afirmativa. O mundo e suas complexidades minimizam a importância do talento inicial, a arte em estado de experiência. Quantos pais cortam a criatividade dos seus filhos logo nos primeiros passos da vida? A imaturidade espiritual inverte os valores e enfraquece o hábito da leitura, do aprendizado e do respeito aos sinais que a vida dá. A criatividade se comunica por meio dos signos. Uns chamam de feeling, insight, Dejà vu ou Deus. Seja qual for o nome, o que se sabe é que essa realidade existe. Portanto, a espiritualidade é o reconhecimento de que existe algo maior que o homem. Esta capacidade de reflexão é uma das ferramentas que dá estrutura para a construção de uma segurança interior capaz de arar o fértil terreno da produção de conteúdo. Ter clareza do que se é e do que se deseja alcançar é o primeiro passo para o desenvolvimento de uma atitude promissora no trabalho da escrita. Cada um possui, ou deveria possuir, o seu processo. Muitos gurus, professores de roteiro e livros de autoajuda apontam caminhos e constroem fórmulas de sucesso. A cada um cabe reconhecer o que é útil pra si, mas todo roteirista deve utilizar bem as ferramentas cinematográficas. Cursos, professores, palestras, diálogos, resenhas, músicas, textos, pessoas desconhecidas, posts de Facebook e frases do “Pensador” são elementos que vão compor a assinatura do trabalho de qualquer um. O mais importante é reconhecer que a obra é maior que o autor e que quando a sensibilidade aflora, trata-se, na verdade, de um trunfo na construção de grandes histórias.

"Eu escrevo como se fosse salvar a vida de alguém. Provavelmente a minha própria vida." Clarice Lispector

É preciso seguir os mestres. O grande roteirista Luiz Carlos Maciel, falecido em 2017, deixou extensa obra a todos os que se propõem a seguir o mesmo caminho. Em seu livro “O Poder do Clímax”, Maciel reconhece o autoconhecimento como peça chave na construção de roteiros com densidade cinematográfica. Seja fazendo yoga, ouvindo Céline Dion ou rezando o terço da Misericórdia, não importa, todo processo criativo deve levar o roteirista ao estágio do silêncio mental. É nessa hora que a boa história fala por si só. Todos possuem histórias e projetos para a TV, cinema ou para oferecer à Netflix, mas poucos são os que constroem histórias genuínas. Ao que parece há uma vibração no mercado audiovisual de que todos podem ser roteirista. De fato, isso é possível desde que haja empenho e dedicação para cumprir bem essa missão. Numa obra audiovisual, como tarefa de muitas mãos, existe uma compreensão comum que se chama escrita visual. É o resultado da criação das experiências construídas pelo diretor, roteirista e produtor. Filmes e séries que impressionam, repercutem e exploram outras dimensões ou camadas são, na maioria, construídos sob uma intensa atividade de estudo e trabalho para que todos os signos e elementos façam sentido, empurrem visualmente a história pra frente É preciso tocar no sentimento das pessoas. É quando a obra está sob a égide da experiência criativa. É quando se ouve a mensagem de Deus-Universo. Não se trata simplesmente escrever histórias tristes ou alegres. Trata-se de uma pulsante atividade emocional dada pelo suor de um trabalho puramente racional. Por isso, o respeito pelo processo. “Moonlight”, “Get Out”, “Big Little Lies” e o recente e delicioso “Call me by your name” cumprem muito bem esse desafio.

"Escrever é deixar uma marca. É impor ao papel em branco um sinal permanente, é capturar um instante em forma de palavra."
Margaret Atwood

A citação de Margaret é um incentivo à sofisticação, ou seja; o cuidado com o trabalho. Esse requinte visual está presente no filme “Me chame pelo seu nome”, lançado no dia 18 de janeiro no Brasil. Todos os que amam audiovisual precisam ir ao cinema e prestigiar o belo trabalho de equipe presente na obra. É impressionante perceber como os elementos cinematográficos conduzem os olhos do público. Percebe-se que o roteiro está numa dimensão muito parecida com a experiência de uma pintura exposta num quadro. A direção é impecável e toda cena possui um elemento de comunicação muito forte. Absolutamente tudo que está inserido ali faz sentido. O roteiro caminha num movimento crescente e constrói muito bem a relação entre os personagens, inclusive os estágios de um relacionamento. É como se o público entrasse num carro em movimento. Obviamente que existe uma sedução própria: a Itália! Tudo é lindo, simples, requintado e propõe uma experiência única: viver a vida. A fotografia é calculada, mas coloca o espectador numa posição de liberdade quase impressionante. Tudo construído. Plano sob plano.  Quando os personagens estão juntos: foco no diálogo. Quando estão separados: planos abertos. A narrativa evoca a trilha. O som, nesse filme, é um dos personagens e dá tom às reflexões. A sexualidade ali, não parece ser o foco, pois o que se apresenta de verdade é a humanidade de cada um. Há algo maior que acena na complexidade da história. A direção é muito inteligente, pois dá pistas desde o início. É como se as cuecas, as frases à beira da piscina, a fruta e a fome fossem metáforas para apresentar o que viria a seguir: o amor. Em nenhum momento no filme os mistérios são ditos. Não há explicação. Tudo está condicionado às imagens. Quando Jennifer Van Sijll, Margaret Mehring e Luiz Carlos Maciel refletem sobre o processo criativo do roteiro estão apontando para essa construção minuciosa. Tudo é construído com mistério como se abas fossem se abrindo e trazendo mais problemáticas à história. De fato, algo viria no futuro. A conversa entre pai e filho no sofá é arrebatadora. Há um silêncio na perfeição daquela vida. Há um tempo de respiro, uma aceitação, uma questão muito maior sobre o que dois homens fazem quando se beijam. Existe uma frase potente no filme que precisa ser colocada aqui: "Não mate a alegria que um dia você sentiu". É importante perceber a grandeza da obra. A técnica de J.J Abrams, conhecida como “The mystery box”, ensina que no processo de construção de um roteiro é como se o roteirista desmontasse uma caixa e quando a resolução já estivesse concluída, não restaria alternativa senão a sua reconstrução. A função da caixa é guardar mistérios assim como o roteiro, que numa escrita cinemática é desmontado para a chegada do clímax. Entretanto, ao alcançar a resolução,  para cumprir a sua funcionalidade precisa, voltar a guardar mistérios.  

"Existem três regras para escrever ficção. Infelizmente ninguém sabe quais são elas." 
W. Somerset Maugham


“Me chame pelo seu nome” é um filme global e muito bem articulado. Seus produtores, entre eles o brasileiro Rodrigo Teixeira, foram muito felizes na construção dessas mensagens. Todas as críticas ao filme são de muito bom gosto e acenam para o que já foi dito anteriormente: trata-se de uma obra plena, arquitetada e com grandes possibilidades de ser classificada como o filme da vida de muitos. É uma grande aula de narrativa cinematográfica. Não se pode negar que há também um ótimo desenho de produção, de como fazer filmes de qualidade, com proposta visual e impacto de negócio. Que ninguém se prenda às amarras do mercado. É fundamental investir no autoconhecimento para construir uma obra genuína. Cuidar do processo criativo no desenvolvimento do roteiro deve ser a maior preocupação de qualquer roteirista ou produtor antes do desejo de vender ingresso. É preciso deixar que a obra fale por si. Apenas dessa forma é que os resultados virão. E eles chegam.  


PS: Escrevi o texto no domingo, após assistir ao filme, mas não consegui publicá-lo no mesmo dia. Algo me pediu para esperar. Havia algo que precisava ser dito. Saí da sala com a sensação de que o filme poderia ser indicado ao Oscar. Hoje, 23 de janeiro, “Me chame pelo seu nome” é indicado a quatro Oscars – Melhor Filme, Melhor Ator (Timothée Chalamet), Melhor Roteiro Adaptado e Melhor Canção Original (Mistery Of Love).


Ao que parece, assim como praticado por Céline Dion, ouvir a voz do coração ainda é o maior dos conselhos. 


No vídeo abaixo, Céline conta sobre carreira, relação com o trabalho e como foi difícil começar.






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