Roteiro, Seven Seconds e o fim da obra

abril 22, 2018

JoJo Whilden/Netflix

Nas primeiras páginas do livro "Como contar um conto" de Gabriel García Márquez existe uma frase capaz de acalmar o coração de qualquer escritor. Ei-la: "A coisa mais importante deste mundo é o processo de criação". O mestre colombiano está certo. O ensinamento diz respeito à forma de trabalho da sua oficina de roteiro no qual roteiristas tinham que desenvolver histórias curtas. Certamente muitos já leram esse livro. É uma obra rara e deliciosa. Lendo o passo a passo dos encontros é possível crer que o mundo foi feito numa Writers Room onde deuses do roteiro tinham a incrível missão de construir o Universo.

Inconscientemente todas as respostas, tão buscadas pelos roteiristas iniciantes, vão surgindo. E no clímax de uma página depois da outra a constatação: o roteirista se faz na trama da vida. Numa sala de roteiristas se encontram escritores das mais variadas formações e sensibilidades. E isso é fantástico! Cada qual com o seu olhar pode contribuir para o desenvolvimento da história, que na verdade, é a dona de tudo. O livro de Gabriel acena para um procedimento muito importante e sofisticado na construção de um roteiro: o polimento. Com dicas, avaliações, análises e enfrentamentos, a história vai ganhando forma. Que luxo ler uma narrativa complexa e recheada de imagens, que é o que mais importa na escrita cinemática.  A transversalidade da narrativa é uma ferramenta muito poderosa. Ela é capaz de unificar mundos, substituir personagens e potencializar emoções, objetivo maior do roteirista. Há quem tente e há quem faça com maestria. É o caso de Veena Sud. Veena possui uma das salas de roteiristas mais diversificadas da indústria cinematográfica, pois sabe dar valor ao processo. Quanto mais possibilidades de análise, mais ferramentas narrativas, mais polimento e mais emoção. Seven Seconds é a última criação de Veena, disponível e já cancelada pela Netflix. A série dramática, apesar do tom previsível de seus personagens, está totalmente desenhada para o crescimento da emoção. É um produto potente e complexo em todos os sentidos.  Apesar da trama policial, o que se vê é um requinte na narrativa emocional dos personagens, visivelmente construídos com contraste e oposição, ferramentas poderosas da escrita cinematográfica. O drama familiar de Seven Seconds pesa muito. As camadas dos sofrimentos  dos personagens são descascadas como uma cebola. Daí o telespectador consegue compreender os sinais suspensos na história e as verdades motivacionais. A mídia brasileira analisou pouco Seven Seconds e seu cancelamento gerou mais notícias de fofoca do que revisões concretas. É o que sabemos fazer de melhor. Mas de uma coisa é certa: talvez seja a única série da Netflix capaz de render baldes de lágrimas e uma nova experiência na poderosa do streaming. É uma série difícil de maratonar. 

Após a leitura desse texto, faça o exercício: entre no Twitter e busque por #SevenSeconds. Lá, milhares de fãs da série estão revoltados com o cancelamento da obra. É uma pena que a Netflix não dê continuidade ao trabalho criado por Veena. Entretanto, existem rumores de que Seven Seconds já tivesse sido criada para ser uma “stand alone story”, ou seja; uma “história sozinha” como  “The Night of”, série amarga da HBO. Apesar de alguns analistas afirmarem que “tudo já foi dito” em 10 episódios, Veena deixou claro que sua equipe está à disposição para dar continuidade à série. É notável a complexidade das camadas abordadas por Sud e, portanto, a viabilidade da segunda temporada, mas ao mesmo tempo uma reflexão é pertinente: qual o fim da obra? Quando é que ela verdadeiramente se esgota?  Quando séries se prolongam sem necessidade, perdem potência narrativa e originalidade. 

Em arte, Fayga Ostrower, artista plástica brasileira, acena para a compreensão de que a obra finalizada é àquela que seu “todo criado” faz sentido. É claro que na indústria cinematográfica, a liberdade de criação é subjetiva e depende de uma série de elementos, mas o conceito de sentido na escrita visual deve ser muito bem observado. Seven Seconds cumpriu bem sua jornada: ganhou fãs pelo mundo, recebeu grandes críticas, teve uma audiência de 84% no Rotten Tomatoes e será indicada ao Emmy como melhor série dramática limitada. É um belo fim.

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