Roteiro, The Rain e o poder das escolhas

maio 06, 2018

Foto: Netflix 

Quando se trata de produção audiovisual por demanda é preciso um pouco de flexibilidade. As grandes empresas produtoras de conteúdo possuem sob a suas mesas milhões de dados e informações preciosas dos comportamentos de seus telespectadores. Hoje, um produtor precisa necessariamente observar e ouvir o seu público com o objetivo de direcionar conteúdo original com base nas especificidades de seus fãs. As séries estão cada vez mais encomendadas e por isso é indispensável analisar o contexto das criações. 

"Continue lembrando-se que literatura é uma das estradas mais tristes que leva a tudo". 
André Breton 

A Netflix disparou mais uma série baseada nos últimos sucessos da cartela: “The Rain”. A própria empresa divulgou em suas redes sociais que o público era o mesmo, os devoradores de “Stranger Things” e “Dark”, que por sinal, seguem firmes no pelotão de acertos. O mais legal no trabalho de análise de conteúdo é perceber o quanto o público brasileiro é fiel às produções. Em menos de um dia do lançamento da série já existia um fã clube no Twitter e grupos de discussão no Facebook. Os debates são hilários. Aliás, é preciso levar em consideração que a rainha do streaming está bem atenta às movimentações da geração millenials. “The Rain” utiliza da linguagem multiplataforma pra seguir com sua narrativa.

"Um escritor deve ensinar a si mesmo que o mais básico de todas as coisas é ter medo"
William Faulker 

Um mundo pós-apocalíptico sempre é bom de acompanhar pelo simples fato de gerar impacto de curiosidade. O fim dos tempos cria um interesse genuíno nas pessoas. Vide o que aconteceu com a novela “Apocalipse” da RecordTV nas últimas semanas. Existe um interesse do público brasileiro por histórias desse gênero. Tanto “The Rain” como “Apocalipse” possuem problemas na construção dos universos. São esses universos que trarão a verossimilhança e é com ela que o telespectador acreditará nas mentiras/verdades contadas. Se um universo não é fidedigno à proposta lançada, as perguntas e dúvidas surgirão. Se os princípios do mundo não foram construídos e ditos de forma visual, fica difícil levar o público para dentro da história. “The Rain” possui problemas de edição, continuidade e na atuação de alguns atores. Isso não significa que a série é ruim. Editores e analistas de várias mídias brasileiras estão colocando a série na berlinda por tais erros, mas é importante levar com consideração duas coisas: é a primeira obra da Dinamarca e a série possui muitos trunfos. E é sobre isso que esse site se propõe: discutir o processo e as ferramentas de criação.

"A glória de um bom conto é que ele é ilimitado e fluído. Um conto pertence a cada leitor em sua própria maneira particular". 
Stephen King 

 A série criada pelos cineastas Jannik Tai Mosholt , Christian Potalivo e Esben Toft Jacobsen traz uma discussão muito complexa sobre a existência humana: será que os homens serão capazes de voltar a amar uns aos outros? O trio de criadores é conhecido por suas produções sofisticadas e com um desenho visual bem articulado. Os três possuem longos currículos e nomeações recentes no "The Robert Award", premiação de cinema do país. No que se refere à forma de organização da história, a série possui uma estrutura procedural apenas à camada de apresentação dos personagens, o que torna a escolha pela subtrama familiar óbvia, mas ao mesmo tempo interessante sob a ótica da ética. É um ótimo ponto de conflito que sustenta bem a série. “The Rain” não é uma “série buzzy”, mas é capaz de levar a produção dinamarquesa para novas temporadas por outras qualidades: as escolhas complexas no desenvolvimento do enredo, a fotografia impecável e a direção atentíssima. É uma série que respeita as regras da linguagem visual. Parece até que cumpriu um Manual de Escrita Cinemática. Outro grande trunfo da série é a forma como os roteiristas defendem o debate dos temas religião, ética e amizade. Dentro da história, tudo se envolve e não fica chato. Nesse caso é sempre bom trazer referências. No filme “Arrival” existe um debate final muito pertinente sobre a condição humana que se conecta bem com a série. Tais temas são alinhavados com muita sabedoria tanto no filme quanto na série. 

"Cada história, cada incidente, cada pedaço de conversa é matéria prima para mim"
Sylvia Plath 

Sites especializados estão indicando “The Rain” como a obra pós-apocalíptica da década. Numa compreensão mais esperançosa sobre o futuro da série, o que existe são as boas escolhas feitas com as informações disponíveis pelos criadores. Isto porque visivelmente a tensão é colocada num nível muito alto. É como se todos rissem à beira do abismo, como se soubessem o que existe depois do muro*. Este é o ofício do roteirista: costurar bem a história para conduzir o público e flertar com suas emoções. “The Rain” faz isso muito bem e é uma ótima série com escolhas arriscadas, mas promissoras. Os talentos dinamarqueses mostraram ao mundo que nem as legendas são obstáculos para uma boa história universal.

*Para entender é preciso assistir.  

You Might Also Like

0 comentários

Núcleo de Direitos e Diversidades

RI & Audiovisual

Iladisc